Caso Poze expõe hipocrisia seletiva do Estado e os limites da cultura periférica sob cerco policial
- Marcus Modesto
- 29 de mai.
- 2 min de leitura
O rapper Oruam não demorou a reagir. Assim que a prisão de MC Poze do Rodo virou manchete na manhã desta quinta-feira (29), ele foi às redes sociais denunciar aquilo que, segundo suas palavras, não passa de mais um espetáculo de humilhação patrocinado pelo Estado contra jovens da periferia.
— O Estado gosta de envergonhar. Algemaram ele, nem precisa disso. O cara é exemplo pra várias pessoas. Todo mundo sabe que isso é uma mentira. Ele é cantor de baile de favela, não é envolvido com facção. Maior covardia. Por isso que ‘nós é’ revoltado — desabafou Oruam.
O desabafo escancara um problema recorrente: o tratamento diferenciado — para não dizer seletivo — que o aparato policial adota quando o alvo é preto, pobre e favelado.
Poze foi preso no condomínio de luxo onde mora, no Recreio dos Bandeirantes, Zona Oeste do Rio, sob acusações de apologia ao crime e suposto envolvimento com o Comando Vermelho. A polícia sustenta que o cantor faz shows exclusivamente em áreas dominadas pela facção, com traficantes armados garantindo a segurança dos eventos. As letras, segundo os investigadores, glorificariam o tráfico, o porte de armas e até confrontos entre facções rivais.
Aqui cabe uma reflexão incômoda: até onde vai a liberdade artística e onde começa o crime? O funk, assim como o rap e outras expressões da cultura periférica, sempre foi um retrato duro da realidade das favelas — uma realidade que o Estado insiste em ignorar quando não lhe convém, mas que criminaliza quando exposta nos palcos e nas plataformas digitais.
Curiosamente, o mesmo Estado que se mostra eficiente e ágil para algemar cantores de baile funk é o mesmo que falha miseravelmente em combater a corrupção institucionalizada, o desvio de verbas públicas e o crime organizado que circula de terno e gravata nos salões do poder. A indignação de Oruam reflete não apenas solidariedade a um amigo, mas um grito coletivo de quem vê, mais uma vez, a criminalização da favela ser tratada como política pública.
O próprio histórico de Oruam não escapa desse roteiro: ele foi preso em fevereiro deste ano por direção perigosa e, dias depois, flagrado dando abrigo a um foragido da Justiça — fato que ele nega ter sido proposital. É o retrato de uma juventude que cresce no fio da navalha, oscilando entre o sucesso na música e a permanente vigilância, quase sempre seletiva, da polícia.
A prisão de Poze acende novamente o debate: é o crime que está sendo combatido ou é a existência da cultura de favela que incomoda? Porque se for coerente, o mesmo rigor deveria se estender às milícias que dominam boa parte do Rio, às rachadinhas dos gabinetes políticos, às licitações fraudadas e aos bilhões que evaporam dos cofres públicos. Mas não. O alvo, mais uma vez, é quem canta a dor da própria quebrada.

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