Preconceito ainda afasta pessoas trans do diagnóstico e tratamento do câncer
- Marcus Modesto
- 16 de nov.
- 3 min de leitura
Há pouco mais de um ano, o analista de mídias sociais Erick Venceslau recebeu uma das notícias mais difíceis de sua vida: o nódulo que havia percebido no peito era, de fato, um câncer — e de um dos tipos mais agressivos. O choque inicial veio acompanhado de medo, insegurança e muitas dúvidas. Mas o diagnóstico também acabou provocando algo profundo: foi o impulso que faltava para ele assumir sua identidade como homem trans.
“Eu estava muito adoecido tentando sufocar isso em mim. Questionava há muito tempo, mas nunca conseguia avançar. Faltava estabilidade financeira e eu temia a transfobia da minha própria família”, conta.
A mudança só aconteceu quando Erick se mudou para outro estado, iniciou psicoterapia e começou o tratamento contra o câncer. Nesse processo, diz ele, conseguiu finalmente dar nome ao que sentia e colocar para fora o que sempre tentou esconder.
Diagnóstico tardio, medo antigo
Quando buscou ajuda médica, o tumor já tinha três centímetros. Pouco depois, começou a crescer rapidamente. Erick admite que não tinha o hábito de realizar exames preventivos — um comportamento comum entre pessoas trans e LGBTQIA+, consequência direta da falta de preparo e acolhimento nos serviços de saúde.
“O sistema não está preparado para a gente. Falta letramento dos profissionais e sobra preconceito. Muitas pessoas preferem não se consultar para evitar violência. Eu mesmo já passei por situações constrangedoras quando era atendido como mulher cis lésbica. Imagine para uma pessoa trans”, desabafa.
A presidente regional da Sociedade Brasileira de Mastologia no Rio de Janeiro, Maria Julia Calas, confirma que o problema é recorrente.
“É uma população extremamente estigmatizada. O preconceito aparece desde a recepção até o atendimento médico. Isso afasta essas pessoas da prevenção e do diagnóstico precoce”, afirma.
Guia inédito para pacientes LGBTQIAPN+
Diante desse cenário, Maria Julia e a oncologista Sabrina Chagas organizaram um guia oncológico voltado especificamente para pacientes LGBTQIAPN+. O material, chamado Nosso Papo Colorido, está sendo lançado este mês.
Sabrina explica que recortes de gênero, raça e etnia ainda são negligenciados na saúde, o que cria barreiras e fragiliza o cuidado. “A oncologia avançou muito, mas ainda existem lacunas enormes no atendimento a populações historicamente marginalizadas”, diz.
Erick vivenciou isso na prática. Após realizar a cirurgia, conseguiu retirar totalmente as mamas, mas ainda não pôde iniciar a terapia hormonal que deseja.
“É muito doloroso ouvir do seu oncologista: ‘Não sei se você pode tomar hormônio’. Não sou o primeiro homem trans com câncer de mama. Falta estudo. Falta preparo”, critica.
Corpo, identidade e protocolos
As médicas reforçam que já existem informações suficientes para orientar condutas básicas — e que os profissionais precisam se atualizar.
Mulheres trans, por exemplo, também podem desenvolver câncer de próstata, mesmo com a inibição hormonal. Já no caso do câncer de mama, homens trans que não realizaram mastectomia devem seguir o rastreamento com mamografia; e mulheres trans que utilizam hormônios passam a desenvolver glândulas mamárias, também exigindo monitoramento.
Além disso, qualquer pessoa com útero precisa manter o rastreio para HPV, principal causa de câncer de colo de útero. Mas o ambiente costuma afastar homens trans: clínicas ginecológicas são pensadas para mulheres cis, o que gera desconforto e falta de acolhimento.
Para enfrentar essas lacunas, a Sociedade Brasileira de Mastologia prepara diretrizes específicas de rastreamento para a população trans, em parceria com outras entidades médicas. O documento deve ser publicado no início do próximo ano.
A força do acolhimento
Para Erick, acolhimento não é detalhe — é parte fundamental da cura. Ele usa as redes sociais para compartilhar a experiência com o câncer e seu processo transexualizador. E afirma que o apoio que recebe tem sido decisivo.
“Tenho certeza de que 80% do sucesso do meu tratamento se deve à minha esposa e aos médicos. Mas os outros 20% vieram das mensagens que recebi nas redes. Pessoas que eu nunca vi na vida me deram força quando eu mais precisava. Esse apoio foi transformador.”
A história de Erick revela uma urgência: o preconceito ainda é uma barreira que adoece, silencia e atrasa diagnósticos. Mas também evidencia que acolhimento, informação e respeito podem salvar vidas.




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