O Brasil se olha no espelho e não gosta do que vê: o racismo que insiste em ser regra
- Marcus Modesto
- há 4 horas
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Há episódios que funcionam como radiografias instantâneas de uma nação. Não porque sejam casos isolados, mas justamente por condensarem em poucos minutos aquilo que se espalha, silenciosamente, pelo cotidiano de milhões. O constrangimento imposto à ministra substituta do Tribunal Superior Eleitoral, Vera Lúcia Santana Araújo, no seminário “Ética na Gestão”, não foi uma exceção. Foi a regra escancarada, nua, crua — sem maquiagem, sem disfarce, sem filtro.
O Brasil gosta de se apresentar ao mundo como uma democracia vibrante, plural, miscigenada. Mas basta um olhar minimamente atento para perceber que essa narrativa é, em grande medida, uma peça publicitária de gosto duvidoso. Por trás dos discursos sobre diversidade, o país mantém de pé uma arquitetura social que segue organizada segundo a cor da pele.
Quando uma ministra negra é barrada na entrada de um evento promovido pela Comissão de Ética Pública da Presidência da República, o nome do evento se converte automaticamente em ironia cruel. Que ética é essa que falha na porta? Que gestão é essa que replica, sem constrangimento, os mesmos mecanismos de exclusão que fingimos ter superado?
Não houve “erro de lista”. Não houve “falha operacional”. O que houve foi a operação silenciosa, eficiente e contínua do racismo estrutural brasileiro. A mesma engrenagem que, diariamente, transforma crachás em barreiras, documentos em dúvidas, títulos em desconfiança e diplomas em invisibilidade. A cor da pele, no Brasil, ainda decide quem tem direito ao constrangimento e quem tem direito à reverência.
O mais perverso dessa engrenagem é sua capacidade de se disfarçar de burocracia, de protocolo, de procedimento. O racismo brasileiro não grita. Ele sussurra, ele desliza, ele se esconde nos bastidores dos atos cotidianos. A ministra não foi barrada por ser quem é — foi barrada por representar aquilo que o Brasil insiste em não querer ver refletido nas suas instituições: a presença negra ocupando espaços de poder.
As notas de repúdio vieram, como sempre. As desculpas protocolares também. Mas o roteiro já é conhecido. As instituições performam indignação pública, investigam, lamentam, e seguem funcionando exatamente da mesma maneira. Porque mexer na engrenagem exige mais do que comunicados: exige desconstrução ativa, exige enfrentamento real, exige coragem para admitir que o Brasil não é uma democracia racial. Nunca foi.
O episódio revela mais do que um constrangimento isolado. É a ponta visível de uma estrutura que se alimenta do apagamento sistemático de corpos negros dos espaços simbólicos de poder. E se uma ministra de um dos mais altos tribunais do país é tratada assim, que chances tem a mulher negra da periferia? O jovem negro no mercado de trabalho? O estudante negro que tenta acessar a universidade?
O racismo brasileiro não é um problema dos outros. Não é uma exceção geográfica. Ele está no cerne do pacto social que nos constitui enquanto nação. Está nas escolas, nas empresas, nas universidades, nas redações, nas câmeras legislativas, no Judiciário. Está, sobretudo, na recusa cotidiana de reconhecer que essa é uma ferida aberta que não cicatriza sozinha.
Enquanto o país não abandonar de vez a fantasia de que somos todos iguais, seguiremos colecionando episódios como este: dolorosos, revoltantes, didáticos. E seguiremos, também, alimentando essa democracia frágil, capenga, seletiva — que, nas aparências, se quer plural, mas, na prática, segue organizada pela lógica de quem pode entrar… e quem deve ser barrado na porta.
O espelho está aí. E, mais uma vez, o Brasil não gostou do que viu.

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