Racismo à brasileira: quando o cotidiano vira campo de batalha para a população preta
- Marcus Modesto
- há 1 dia
- 2 min de leitura
Uma sociedade que normaliza o preconceito não pode alegar surpresa diante da desigualdade. A nova pesquisa divulgada nesta terça-feira (20) expõe, com números e dor, aquilo que a população preta brasileira já sente na pele todos os dias: o racismo não é um episódio isolado. É uma rotina, sistemática, silenciosa e brutal.
Segundo o levantamento realizado pelas organizações Vital Strategies Brasil e Umane, com apoio da UFPel e do Instituto Devive, 84% das pessoas pretas afirmaram já ter sido vítimas de discriminação racial. Não se trata de achismo. São dados que gritam o que o Brasil insiste em sussurrar — ou fingir que não escuta.
Menos respeito, menos oportunidades, mais vigilância
A pesquisa aplicou a chamada escala de discriminação cotidiana a mais de 2.400 pessoas. E os resultados são alarmantes. Mais da metade dos pretos entrevistados disseram ser tratados com menos gentileza em situações corriqueiras, como entrar numa loja ou pedir uma informação. Outros 57% relataram receber atendimento inferior em estabelecimentos comerciais. E mais de 1 em cada 5 afirmou já ter sido seguido dentro de uma loja — como se carregar uma melanina mais acentuada fosse sinônimo de suspeita.
A seletividade é evidente: entre brancos, apenas 13,9% disseram ter sido tratados com menos gentileza. O abismo não é só numérico. É moral.
A interseção do preconceito: ser mulher, preta e pobre
O recorte interseccional da pesquisa escancara ainda mais as camadas dessa violência. Mulheres pretas estão no topo da vulnerabilidade: 72% disseram ter sofrido mais de um tipo de preconceito. Elas carregam nas costas o peso da cor, do gênero, da classe — e da negligência histórica do Estado.
Estrutura, não exceção
Não é novidade. O racismo no Brasil é estrutural, e o novo estudo apenas reforça o que outras pesquisas já demonstraram. Negros são maioria entre os assassinados, os desempregados, os moradores de favelas. São minoria nas universidades, nos cargos de liderança e nos espaços de decisão. E quando buscam atendimento de saúde, recebem menos analgesia, mais violência obstétrica, menos dignidade.
Dizer que o racismo é um problema brasileiro é subestimar a gravidade: ele é um projeto. Um sistema que opera todos os dias, em todos os lugares, e que só se mantém porque convém a muitos e incomoda a poucos.
A omissão é cumplicidade
Pedro de Paula, da Vital Strategies, fez um apelo direto: qualquer organização ou governo que trabalhe com políticas sociais precisa assumir o combate ao racismo como prioridade. A omissão, em um país com esse nível de desigualdade racial, não é neutra. É conivente.
Enquanto o Estado seguir indiferente, e a sociedade branca mantiver o privilégio da negação, o Brasil seguirá cultivando um apartheid não declarado — mas escancarado nos olhares, nos salários, nas oportunidades e nos caixões.
Essa pesquisa, como tantas outras, deve deixar de ser apenas mais um documento arquivado. O tempo da constatação já passou. O que falta agora é coragem institucional — e compromisso coletivo — para mudar o que sempre foi conveniente manter como está.

Comments